Por José Coutinho Júnior Da Página do MST
Para Iara Pietricovsky, antropóloga e integrante do conselho de gestão do
Instituto de Estudos Socioeconômicos (Inesc), a sociedade civil precisa estar
atenta e mobilizada em relação aos debates na Conferência da Rio+20, pois
conceitos importantes tratados e definidos na Rio92 podem estar ameaçados.
Confira a entrevista que Iara concedeu à Página do MST.
A Rio+20
é uma consequência da Rio92. Quais são as principais diferenças no caráter
político e na conjuntura em que as Conferências se realizam?Em
1992, nós estávamos no ápice do neoliberalismo, e ideias como a privatização e o
Estado mínimo estavam sendo aprofundadas. A conferência de 1992 foi um
contraponto a esses ideais, mostrando que existiam outras coisas importantes que
deviam ser consideradas, como os direitos humanos e a sustentabilidade
ambiental.
A Rio92 desorganizou essa lógica neoliberal que assolava o
mundo naquele momento. Vinte anos depois, estamos vivendo num mundo onde os
paradigmas do neoliberalismo estão em crise. Em 92, ao pensar nos pilares
social, econômico e ambiental, se desenvolveu princípios como o de
responsabilidades diferenciadas entre os países, cuja ideia é que os países
poluidores são os maiores responsáveis pela crise ambiental e, portanto, devem
arcar com esta responsabilidade. Além de uma série de marcos regulatórios e
princípios jurídicos internacionais ratificados por meio de tratados e
convenções, que são fundamentais.
Hoje é o oposto. Estamos num mundo em
crise, com os países e seus governos fragilizados, as corporações estão
extremamente fortalecidas, pressionando e destituindo os estados de seu papel
regulador e mediador.
Como conseqüência desse processo, a Rio+20 está
diluída, pois o que foi constituído ao longo dos anos e conferências em relação
aos direitos humanos está sendo reduzido. Ou seja, vivemos em tempos muito mais
complexos e muito mais complicados, portanto é necessária maior consciência e
ação política por parte dos cidadãos, organizações políticas e movimentos
sociais em torno do que está se deliberando na Rio+20.
Em relação
às metas da Rio92, o que foi cumprido até hoje?É difícil dizer.
Há uma série de leis e marcos legais que foram regulamentados. Hoje há o
princípio das Responsabilidades Comuns, Mas Diferenciadas, fundamental para
envolver, discutir e obrigar os países desenvolvidos a mudar seu padrão de
produção e consumo, além de iniciativas e experiências do ponto de vista do
desenvolvimento de tecnologias, da compreensão da necessidade de uma mudança de
padrão no mundo.
Mas efetivamente, uma alternativa a essa forma de
produção capitalista baseada em recursos naturais de forma infinita continua
existindo na prática até hoje. E isso é o maior dos desafios que temos hoje na
sociedade planetária. Se não nos mobilizarmos massivamente no sentido de mostrar
tanto às corporações e transnacionais quanto aos governos - que vem respondendo
mais aos interesses corporativos do que da dignidade humana das populações -,
vamos perder um momento importante e transcendente para fazer essa reflexão de
modelo de paradigma e desenvolvimento.
Nesse ano expira o
protocolo de Quioto. Qual a sua avaliação dos resultados do
protocolo?A renovação do protocolo está sendo questionada. O
protocolo essencialmente afirma as Responsabilidades Comuns, Mas Diferenciadas,
ao dizer que os países ricos têm de pagar essa conta, pois eles foram e são os
maiores predadores ambientais. Há também o debate de transferência de
tecnologia: não é só acessar a tecnologia, é transferir, quebrar a lógica das
patentes.
O que acontece é que nenhum país desenvolvido quer assumir
essa responsabilidade. Essa força política que não quer renovar o protocolo quer
partir para outro acordo que responsabilize em igual medida os países em
desenvolvimento, o que configura uma inversão de valores e da responsabilidade
histórica que os países desenvolvidos têm.
É fundamental que se aprove a
renovação do protocolo. Assim como é fundamental que as metas de desenvolvimento
sustentável que estão sendo propostas na Rio+20 peguem os países ricos. Eles têm
de começar a mudar radicalmente e a pagar a conta. Não que nós não tenhamos
responsabilidade, mas eles são os maiores responsáveis: o padrão de consumo e
produção predatório é realizado em grande parte pelos países ricos.
Que metas de desenvolvimento sustentável são
essas?Essas metas são propostas de desenvolvimento que nasceram
da Colômbia, mas que foram rapidamente aplaudidas pelos países ricos. São metas
que pretendem substituir as Metas do Milênio, que fracassaram. Só que para essas
metas serem efetivas, elas tinham que estar atreladas a um conteúdo diretamente
relacionado aos princípios da Rio92, ou seja, o princípio do país
poluidor-pagador, da precaução, que são princípios básicos. Todos os tratados
que foram derivados da Rio92 estão atrelados a estes princípios.
O que
as metas propostas hoje querem nesse momento é o contrário: estão retirando
esses direitos, transformando essas metas em projetos de longo prazo, cujo
exemplo maior é a proposta de dobrar a energia limpa do mundo. Ora, a energia
limpa do mundo hoje corresponde a 4% do total. Em 2030, se dobrar, vamos para
8%. Isso não é nada.
Não se fala de transferência de tecnologia também.
As metas, agora, são assim: em relação ao acesso universal a água, os governos
estão sendo incapazes de garantir este direito. Então o conceito de
universalização do direito a água da margem para se colocar metas pausadas, e
quem vai realizar essa meta são os parceiros prioritários, através das parcerias
público-privadas, nas quais o setor privado será o maior realizador dessas
metas. As metas da Rio+20 privatizam as decisões que deveriam ser realizadas
pelos estados e seus governos.
Aparentemente, há duas agendas, a
dos países desenvolvidos e a dos subdesenvolvidos e em desenvolvimento. Há
posições conflitantes na agenda destes países?Sim. O Estados
Unidos não é um país signatário de nenhum tratado internacional. Com isso ele
joga o jogo mas não se compromete com nada. Ele não quer direito humano algum,
ele quer uma declaração simples, sem nenhuma obrigação. A Europa, por conta
dessa crise absoluta, está numa posição defensiva; o Japão está em crise por
causa dos terremotos, mas ele tem resoluções internas importantes na questão da
sua sustentabilidade, mas não querem compartilhar isso com o mundo. Eles também
rejeitam tudo que diz respeito aos direitos humanos.
O G-77, grupo de
países subdesenvolvidos e em desenvolvimento, do qual o Brasil faz parte, além
de países africanos, árabes e da América Latina, é o grupo que está batalhando
para reafirmar os tratados e convenções que foram aprovados desde a Rio92. Há
contradições, inclusive dentro do Brasil, mas o fato é que esse conjunto de
países tem uma defesa mais pró-ativa em relação à questão dos tratados e dos
direitos.
Você acredita que a Rio+20 vai conseguir avançar na
criação de algum modelo efetivo para enfrentar as crises que
vivemos?A Rio+20 vai ser importante por colocar na agenda
mundial novamente esse debate. O documento oficial vai ser fraco, ele vai
simplesmente introduzir essas metas do desenvolvimento sustentável e dar uma
agenda para o futuro. É preciso brigar para que os princípios e convenções da
Rio92 permaneçam. Lutar para que todas as instâncias e capítulos sejam
vinculados ao tema dos direitos humanos, econômicos, culturais, que foram
constituídos ao longo destas últimas décadas.
Se isso não for feito, esse
documento não vai ter poder nenhum de transformação. Mesmo assim, eu acho que
este debate, nesse momento de crise mundial é fundamental, porque é a maneira
que os movimentos sociais, as organizações de cidadãos e cidadãs que tem uma
consciência do que está acontecendo e que querem se tornar ativos nesse
processo, tem de apresentarem seus pensamentos, disputar com o poder da mídia
hegemônica e das corporações. É um momento em que a gente consegue fazer uma
inflexão de contracultura, de contraponto à tentativa que o modelo e o sistema
têm de se readequar e reproduzir, vestido numa roupagem de economia verde, de
sustentabilidade.
FONTE: www.mst.org.br